Por Isa Leal
Ela não cursou nenhuma faculdade para a sua especialização. Nem sequer sabe que é uma profissional especializada. Isolina da Silva, vendedora de cheiros na feira-livre, é por definição uma superespecializada, por intuição uma alma lírica, por força de seu mister uma feiticeira. Se morasse na cidade de modestas ambições, cujo perímetro se encerra logo ali adiante, no começo de uma estrada que vai levar a uma porção de outros pequenos centros humanos, Isolina da Silva, teria o seu canteiro de cheiros, sim, mas teria de vender sua preciosa mercadoria em triste prosmicuidade, venderia também verduras.
Mas na metropóle Isolina da Silva pode dar-se ao luxo de escolher, de especializar-se, de distinguir, de separar, trigo do joio? Sim, certamente: cebola de cebolinha... Há um mundo de permeio.
A verdade é que se faz necessário distinguir entre a inconveniência, a parlapatice, a falta de distinção de uma cebola, e a distinção de seu prima, a cebolinha. Esta não mexerica como comadre velha...
E é preciso também estabelecer a diferença entre esse personagem sem meios-tons nem matizes, o alho, e outras criaturas: a salsa de alma de enfermeira, presente sempre na canja piedosa do convalescente; o altissonante louro, que nos lembra clangores, clarins, vitórias; o sutil coentro, sem o qual o peixe morre pela segunda vez, e desta vez de sensaboria; o cordial orégano, que parece nos oferecer seu coração, peninsularmente relembrado e sugerindo pizza.
Isolina da Silva escolhe entre os falatórios e inconveniências de uns, a discrição e o decoro de outros. Isolina da Silva é liricamente requintada, e vipe — faz vinte anos! — de vender às freguesas tão ansiosas de singularidades quanto ela própria o perfume da terra...
Magia, ingênua, eficiente magia
Na banca de Isolina da Silva, ao lado dos cheiros-verdes, uma surpresa: e não fosse ela filha de baiana, para esquecer de ter ao seu lado duas boas dúzias de figas! E uma pergunta nos ocorre ao espírito. Que fazem naquela banca as figas que nunca vimos — e faz dez anos que vemos Isolina da Silva, vender na feira de nosso bairro! — passar de suas mãos para mãos de fregueses?
Aqui fica uma opinião depois de muito meditar: tais figas não são para vender. Constituem uma espécie de imprecação de apelo. Para tão feliz criatura é preciso, antes de mais nada, a proteção de todos os deuses morenos, que às vezes, por mera coincidência, têm nome de santo cristão...
É a maneira pela qual Isolina da Silva solicita aos céus, ou a forças ocultas, que lhe permitam fazer também as suas feitiçariazinhas: tão inocente e benfazeja que ela é! Tão ingênua a habilidade de provocar saudade do lar, o desejo do perfume da terra! E por certo nenhum candomblé feito sob a invocação de Exu faz com que o garoto volte mais cedo, ignorando a sessão clandestina de cinema, só porque ouvir dizer que, ao jantar, haverá torta de camarão...
Quando entrevistamos Isolina da Silva, compreendemos logo toda a grandeza de sua missão alicerçadora de lares, sentimos todo o encanto da profissão que, com ser despretenciosa, requer tantas qualidades de alma e coração. E perguntamos a nós mesmos, com pasmo; por que é que o governo não condecora Isolina da Silva? Ela não escreve poemas, porém os torna possíveis; ela evita tragédias e desentendimentos. Ela não alardeia conhecimentos, mas constitui, neste planeta desgracioso, uma afirmação de poesia pura, isenta e sem concessões.
(Leal, Isa. "A vendedora de cheiros na feira-livre". Folha da Noite. São Paulo, 22 de fevereiro de 1957)
Fonte: Jangada Brasil
Ilustração: style pochoir
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