Começo por uma citação: "Advirto aos oficiais de cozinha que com todo o cuidado e com toda a diligência procurem asseio e limpeza de suas próprias pessoas em tudo o que fizerem. Que nem ponham menos diligência em trazerem suas cozinhas tão limpas e com tão boa ordem que a todos aguarde a sua limpeza e o seu concerto.
Que todas as coisas com que trabalham tenham seu lugar certo em que se achem quando forem necessárias e em que se tornem logo a pôr muito bem limpas depois que servirem, não dilatando esta diligência para mais tarde, porque a confusão de muitas coisas juntas lhes não embarace a limpeza delas; e com isto infalivelmente conseguirão obrarem com menos trabalho, e trabalharem com maior asseio.
Que a ferramenta seja a melhor que puder ser, conservando-a sempre muito limpa, para que, em qualquer tempo que lhes for necessária, se sirvam dela, tendo-a pronta, para que com a maior presteza que lhes for possível cumpram todos com as suas obrigações; porque o oficial desta sorte diligente e limpo, ainda que não seja muito ciente, facilmente adquirirá, não só a estimação de todos, mas também a maior opinião".
Estou transcrevendo esta preciosidade sobre a organização e higiene de uma cozinha, tirada do livro Arte de cozinha, por Domingos Rodrigues, cuja primeira edição data de 1680. Este Domingos Rodrigues foi mestre de cozinha de Sua Majestade, o Rei do Portugal e faleceu em Lisboa em 1719, com mais de 82 anos.
Tenho esse livro há anos, numa edição bem mais recente. Mas, na semana passada, acabei dando uma lida um pouco menos superficial e encontrei coisas muito interessantes, além dos conselhos aos "oficiais de cozinha". Por exemplo, no glossário onde, como a própria definição da palavra diz, figuram as explicações sobre a terminologia usada na arte culinária. Pincei algumas, que cito a seguir:
Albardar: termo popular, que designa a passagem de um alimento por um polme de farinha e ovos antes da fritura. Capela de cheiros: ramos de ervas aromáticas com que se temperam guisados. Entesar: mergulhar carne ou peixe num tacho com água a ferver temperada de sal. Lacão: pernil de porco. Lancha: fatia. Pela: frigideira. Pitora: fatia de lombo guisado com toucinho. Salpimentar: temperar com sal e pimenta.
Posto isso, resolvi fazer um lauto jantar que deverei organizar num futuro próximo com o seguinte cardápio: Descaídas albardadas, peixe entesado ao perfume da capela de cheiros, lanchas de lacão salpimentadas, torrijas preparadas na pela. Mas, fiquem tranqüilos, essas não são as receitas de hoje. Só que, inspirado pelo espírito do senhor Domingos Rodrigues, vamos a um Bacalhau espiritual. Preparem-no com a maior diligência, que terão a estima de todos os que venham a degustá-lo.
Via: JCOnline, Gastronomia, 09.08.1998.
Ilustração: Gastronomie Médièvale
que maravilha! adoro essas coisas de historia gastronomica. outro dia estava pensando em ir a uma biblioteca, tipo a de San Francisco, so pra ver o que eles tem de culinaria por la. iria ser interessante, porque certos livros nao tem comno comprar. beijao! :-)
Posted by: Fer Guimaraes Rosa | 26-08-2006 at 12:39