(Em resposta a uma pergunta de Karl Leite)
Publicado n'A União, em 13 de setembro de 2006
Uma das mais doces recordações da minha infância – e quando uso a palavra doce peço que me entendam literalmente – era quando minha tia Adiza, que morava conosco, fazia uma de suas viagens ao interior da qual sempre trazia, como raro e precioso troféu, uma ou duas latas de chouriço. Esta estranha iguaria, que é na verdade um doce feito com sangue de porco, açúcar, farinha e especiarias era considerado artigo de luxo entre nós, pela dificuldade em obtê-lo, e vinha acondicionado em latas de leite em pó, que ficavam na mais alta prateleira do armário. Nada, porém, era suficientemente inacessível para a nossa gulodice e, armados de uma colher de sopa, abríamos as latas e mergulhávamos a colher naquela substância negra e macia, ornada de castanhas, e roubávamos uma ou duas colheradas. Era o bastante, pois a mistura era forte e podia nos colocar com os intestinos desregulados se comêssemos muito, denunciando o atentado ao doce patrimônio de Mamãe e Titia.
Há um doce muito parecido com esse no universo culinário nordestino: é um doce de gergelim, chamado “espécie”, que conheci um dia desses pelas mãos do escritor Aldo Lopes que, indo a Princesa Isabel, sua terra, trouxe para mim a preciosidade, que tem a mesma aparência do chouriço mas difere em relação à base, ao ingrediente principal, que no chouriço, é o sangue de porco e, na “espécie”, é o gergelim. Além disso, o chouriço é mais compacto, mais consistente e a “espécie” mais cremosa, e de sabor mais suave.
Cascudo define um e outro. Segundo o Mestre, chouriço é o mesmo que “morcela”, nome comum em Portugal, e dá a receita, constante no seu Dicionário do Folclore Brasileiro:...
Chouriço ou Morcela
... uma tigela de farinha de mandioca peneirada e outra tigela contendo os seguintes ingredientes: erva doce, pimenta do reino, gengibre, cravo, castanha de caju assada bem seca, gergelim, tudo pilado junto e passado na peneira. Faz-se o mel de rapadura, esfria-se e mistura-se em fogo brando com o sangue de porco, mexendo para não encaroçar. Depois de fervido, coa-se, junta-se a farinha e os temperos, leva-se novamente ao fogo e vai-se despejando lentamente a banha derretida de porco, em fogo alto, mexendo-se vigorosamente até despregar do tacho, coisa que deve acontecer depois de umas duas horas. Come-se frio, com farinha fina.
E as quantidades, perguntaria você, meu caro e exatíssimo leitor. De que tamanho é essa tigela? Quantas rapaduras se usa para fazer o mel? Qual a quantidade de sangue de porco, e como se deve obtê-lo? E eu sei? Quem sou eu para saber de coisas tão misteriosas? Receitas como essas, feitas “no olho” durante tantos séculos, passadas de mãe para filha, desde os tempos em que se amarrava cachorro com lingüiça, nunca trazem as quantidades e para realizá-las você vai usando o bom-senso, repetindo o preparo e testando as quantidades até encontrar a medida certa.
Então, para a sua satisfação, passo-lhe também a receita do doce de gergelim, a famosa “espécie”, colhida no site da Embrapa, dessa vez com as quantidades exatas e perfeitamente passiveis de reprodução.
Doce de Gergelim
Coloca-se um copo americano (chama-se “copo americano” aquele comum, de bar) de gergelim em uma panela e leva-se ao fogo para torrar. Quando estiver estalando retira-se do fogo e mexe-se até esfriar um pouco quando se deve misturar uma colher de sopa de cravo da Índia torrado e meio copo americano de castanha de caju assada e sem pele. Passa-se tudo no moinho ou no liquidificador, coloca-se numa panela, junta-se uma colher de sopa de manteiga e quatro copos americanos de mel de rapadura. Leva-se ao fogo, mexendo sempre até aparecer o fundo da panela. Enfeita-se com castanhas. Quem ensina a receita, acrescenta que o gergelim pode ser moído ou liquidificado. Para não “embolar”, deve-se colocar no liquidificador, uma porção de gergelim e igual quantidade de farinha de mandioca, pois a farinha “enxuga” o gergelim.
No mais, é ter muito cuidado com essas preciosidades culinárias pois são hipercalóricas, desequilibrando sem remédio qualquer dieta de emagrecimento. E bom apetite.
Escrito por Clotilde Tavares.
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A Feitura do Chouriço é uma Prática Coletiva
O Chouriço no Seridó: transformação do sangue em doce, por Maria Isabel Dantas.
Neste artigo Mª Isabel apresenta dados etnográficos da festa da matança do porco e do chouriço nessa região. Aborda "as lógicas simbólicas e sociais que explicam a transformação do sangue, elemento natural por excelência, de alimento perigoso num doce que pode ser consumido com poucas restrições. A festa é um acontecimento extraordinário que simboliza a reinvenção de uma tradição, em que se observa um complexo sistema simbólico e onde se revela uma organização social em torno da família estendida. Apesar da carne de porco e o chouriço serem alimentos proibidos para algumas categorias de pessoas, possuem uma força simbólica capaz produzir momentos festivos e de se constituírem em elementos de trocas. Eles podem ser definidos como comidas-dádivas".A "receita" de chouriço divulgada no estudo de Mª Isabel é fruto da prática que já é tradição, na região do Seridó no Rio Grande do Norte. A seguir, transcrevo alguns trechos:
"Servido como sobremesa, o chouriço é uma combinação culinária de sangue e banha de porco, rapadura, castanha de caju, leite de coco, farinha de mandioca, especiarias (canela, erva-doce, cravo, pimenta do reino e gengibre) e sal."
"A preparação do doce, geralmente supervisionada por senhoras de idade, envolve
todo o grupo doméstico – a família estendida –, os vizinhos e amigos. Realizada durante
um dia inteiro, a chouriçada é um momento único durante o qual trabalha-se e diverte-se muito."
"... a prática desse doce é uma tradição em algumas regiões do interior do Nordeste, estando fortemente marcada por elementos do contexto rural, uma vez que apenas nas últimas décadas do século XX foi levada para os núcleos urbanos. Tanto no campo como na cidade essa atividade ainda conserva a maioria de seus aspectos antigos, apesar das mudanças que vem ocorrendo ao logo dos tempos com o advento de novas tecnologias e da inserção de novos alimentos no sistema alimentar seridoense."
"O cozimento do chouriço é geralmente feito em fogo a lenha controlado pelomexedores e dura em média de 4 a 6 horas. É, talvez, por meio do poder simbólico do fogo culinário que o sangue, alimento impuro, transforma-se em comida menos perigosa e mais aceitável."
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Preparação do Chouriço
[Conforme trabalho de Mª Isabel Dantas]
Apara-se o sangue dos porcos (neste caso, foram 75 xícaras de chá).
A quantidade de xícaras de sangue é a base para a quantidade dos ingredientes e dos temperos usados no chouriço. A medida usada pela mestra que produziu o doce estudado por Mª Isabel difere da que é usada pela maioria das mestras. Normalmente, o doce – no caso, a rapadura – é o ingrediente base a partir do qual são medidos os demais ingredientes. É reconhecido, entretanto, que um chouriço que contém uma boa quantidade de sangue é mais saboroso. Em média, quatro litros de sangue, ou o líquido extraído de um animal com cerca de cem quilos, é a quantidade ideal para a feitura de um chouriço de 60 rapaduras. A quantidade de sangue no caso citado por Mª Isabel ultrapassou essa medida.
Definida a medida do sangue, são estipuladas as quantidades do restante dos materiais, a saber:79 xícaras de chá de farinha de mandioca, sendo 4 delas colocadas a mais, para engrossar o doce;
75 rapaduras (700 g) em forma de garapa;
leite de 6 cocos secos;
3 copos d’água;
50 g de gengibre;
200 g de ervadoce;
200 g de canela;
50 g de cravo;
1 colher de pimentadoreino;
1 kg de castanha assada e moída e
uns 4 l de “graxa” de porco derretida.
No total, foram usados, nesse chouriço, 12 produtos, seguindo-se o modelo vigente na região do Seridó e em algumas regiões do sertão nordestino.
Há uma variedade de orientações quanto à ordem de colocação de alguns ingredientes e temperos, como, por ex., a banha, a castanha e o leite de coco. As pessoas seguem a receita que guardam na memória, como uma herança familiar transmitida, oralmente, de geração para geração.
Preliminarmente, unta-se o interior do tacho com uma parte da banha, procedimento utilizado para evitar que o doce viesse a grudar no fundo da vasilha.
Primeiro, o sangue é medido e coado dentro do tacho, depois é acrescida a ele toda a farinha de mandioca bem peneirada, uma parte da garapa, uma parte das castanhas piladas, uma parte dos “temperos de cheiro”, como a canela, o cravo, a ervadoce, o gengibre e a pimentadoreino.
Em seguida, usando as mãos, é misturada a massa gomosa e avermelhada, até obter-se uma consistência homogênea. Somente após ter certeza de que a massa não contém mais gomos, é que se colocoa uma porção de banha e passa-se a mexê-la com uma colher de pau.
Do momento em que se colocam o tacho no fogão, contam-se quase duas horas para que o doce apresente fervura e receba o leite de coco, os três copos d’água e mais garapa. A fervura deve ser o marco para a contagem do tempo de cozimento do chouriço, que dura mais de sete horas. Há que se ter cuidado em mexer o doce para evitar que engrosse muito rápido e pegue no fundo do tacho. Assim, também o fogo, deve ser bem controlado.
No início do cozimento o a cor vermelha do sangue se mantém, mas, vai perdendo essa tonalidade própria para um tom mais escuro, quando os vestígios de sangue se dissipando lentamente.
Depois de mais de seis horas desde a primeira fervura, com o doce borbulhando ardentemente, é colocado o restante das especiarias e da garapa.
O "ponto” do doce é verificado após colocar-se um pingo do doce dentro de um copo d’água e a massa não se desmanchar. As técnicas utilizadas para se ter certeza de que o doce está no ponto e cozido variam. Os mais usuais são os testes do doce na água, e o da colocação deste num pires - nesse caso, o doce está cozido quando descola facilmente da vasilha. Outra variação, é observar se o doce está enrugando, ou “engelhando”.
Minhas amigas sempre brigam comigo por conta do "no olho" que eu uso pra fazer as receitas que herdei das mulheres da minha família. Talvez seja um jeito da primeira cozinheira manter o mistério enraizado nas nossas veias.
Delícia de texto.
Posted by: V.B. | 24-09-2006 at 16:58
Viva, para quando comida japonesa?
Já agora aos interessados, venham dar uma ajuda a este fórum criado por mim, mas que ainda está bem verdinho...
Bora lá temperar com cores, divertimento e muito sushi e sashimi pelo meio!
http://forumsushisashimi.activebb.net/
Obrigada!
Posted by: K471 | 24-09-2006 at 21:38
Oi tudo bem,
Eu andava a procura desta receita, pois lembrava, que quando eu era criança minha vó que já não está entre nós, que morava em Equador, cidade próximo a seridó, no rio grande do norte, ela trazia para mim latas dessas de leite ninho, e eu adorava, minha mãe, me dizia que era feito com sangue de porco e eu nem acreditava, eu era louca pelo doce, mas sentia todos os sabores dele as castanha os temperos, mais eu nem sentia o sabor de sangue. que saudade daqueles tempos. eu estava procurando a receita, e ache aqui, mas como nos tempos modernos de hoje eu vou fazer essa receita kk parece coisa de magia, com sangue, e estranho e dificilmente vou achar, kk fica so na lembrança pena.
Posted by: Vitória | 19-11-2011 at 17:58
ola tudo bem?quando eu frequentava o primario,vendia se um doce chamado gergelim,era amarelo,e duro,me lembro que se quebrava com um martelinho,tenho muita vontade comer este doce,alguem se lembra dele,ou tem receita,era amarelo.grata
Posted by: cecili | 10-01-2013 at 11:23