Depoimento do folclorista Renato Almeida sobre doces baianos da época de sua meninice (Fim do século XIX)
Em Santo Antônio vivi minha infância e guardo muito marcados os seus traços, tantos dos quais me foram normativos. Um mundo de recordações trago bem vivas, sobretudo da sua paisagem, o que viam meus olhos de garoto, quando de minha casa contemplava lá longe a ondulação da serra de Jibóia, que tapava o horizonte. A essa paisagem ligo um dos meus primeiros prazeres da vida. Quando findas as aulas, num curso que minha mãe, grande mestra e mãe, lecionava aos meninos da família, e depois do jantar, sempre às cinco horas, eu saía a correr pelo quintal imenso, pedia sempre dois vinténs. Era uma moeda de cobre, grandona, em geral machucada, onde mal se lia o cunho — quarenta réis, com a qual ia ou mandava, não me lembro, comprar uma cana caiana. Eu mesmo descascava, não raro cortando os dedos, e fazia os roletes e chupava com uma delícia, que ainda agora me enche a boca d'água. Foi a primeira impressão de doçura que me deu a vida. Era o paladar, era a gostosura da cana, que se tomou assim um dos prazeres do começo da minha meninice.
Claro que, guloso, embora de pouco comer, vi-me logo no mundo encantado do açúcar e tinha minha geografia saborosa. Indo à Bahia, nesse tempo não se falava em Salvador ainda, quando o trem passava em Taitinga, havia os famosos manuês e, na capital, era festa de guloseimas, sobretudo das balas, que se chamavam queimados, e havia uma de chocolate, formato de moeda, que nunca encontrei coisa melhor, e desapareceu também. E, quando ia a Santo Amaro, terra de minha família materna, achava um deslumbramento ver minha tia diante dos panelões mexendo a geléia de araçá, que se devia olhar a certa distância, porque saltavam pingos e queimavam atrozmente.
Hoje, tão de longe, é que vejo como é grande o sortilégio do açúcar na vida da gente. O doce é um prazer da vida, mas eu tenho que, para menino, a coisa é muito mais relevante, por permitir momentos deliciosos, que não estão só nas papilas, estão no prazer da degustação, estão nos olhos, estão na gulodice. Os pratos de comida, naquela época, não tinham a apresentação sofisticada de hoje, não tinham via de regra o colorido nem eram enfeitados que nem os doces. Podiam ser excelentes, mas faltava-lhes sugestão. Os doces, sim, eram bonitos.
Revejo muito minha meninice no que comia, sobretudo nas gulodices. Talvez não os lembre suficientemente, mas não tinha maior diversão do que ver como se fazia um pão-de-ló. Desde quebrar os ovos e bater as claras, que lembravam nuvens, que se douram e se açucaram, e ver aquela pasta crescer, engrossar com a farinha de trigo ou fécula de batata, e depois encher as fôrmas. Então alargava a emoção do que assistia, tirando as sobras do recipiente em que era feito, com os dedos para me deliciar, lambendo a panela, como se dizia impropriamente. Muitas vezes, quando era de noite, pois de dia contar história cria rabo, ouvia muitas delas, e as de bichos eram as que mais me animavam, e ia assim tomando minhas primeiras lições de sabedoria popular, que mais tarde tanto me absorveria. Engraçado que, das histórias, esqueci muito, mas a lembrança do pão-de-ló está viva nas minhas velhas retinas. Hoje mesmo me surpreendo como o açúcar marcou tanto minha infância.
Tive o encanto da doçaria e noto que as suas impressões se mantiveram muito nítidas. Uma vez, no primeiro ano deste século, assisti a um casamento e, ao centro da mesa, lá estava uma torre Eiffel, coisa de grande voga no tempo, toda de doce. Havia uma armação e não me recordo se a torre, que tinha pelo menos um metro de altura, era de sequilhos ou mesmo de pasta de bolos. Sei que achei um deslumbramento e toda vez que olho para a torre Eiffel, em Paris, me parece uma cópia monstruosa daquele doce que admirei aos seis anos de idade. Também havia umas curiosas composições, esculturas com doces, e, com um chamado pingo d'ovos, compunham um abacaxi dourado. A arte me emocionava mais do que o gosto, mas nem por isso vim depois a admirar naturezas-mortas...
Foi por esse tempo que tive meu primeiro contato direto com o açúcar. Fui passar alguns dias no Engenho do Macaco, perto de Santo Amaro. Era um deslumbramento; do alto da casa de residência, outrora teria sido casa-grande, a maravilha era ver os carros de boi chiando pela estrada, trazendo os carregamentos de canas, que entravam nas moendas. Era muito garoto, não podia ir ao engenho, só ver de longe. Então admirava aquele mar de bagaços que iam sendo atirados em redor do engenho, que fumegava lá embaixo, noite e dia, pela sua grande chaminé. E era uma paisagem estranha, mas o que mais me interessava era ver os carros de bois e também o pasto, que ficava defronte da casa com o gado, sossegado e paciente, pastando por ali afora.
Mais tarde estive no Engenho da Passagem, já agora mecanizado. Lembro-me de que falavam que entrava a cana na moenda e do outro lado saía o açúcar. Pouco se me dava, minha paisagem eram os carros de bois, era a pastagem, eram os pretos trabalhando. Nem o ramal de estrada de ferro, que ia levando os sacos, me interessava, estava positivamente no elemento folk, o mais... nem sabia o que fosse.
Viver num engenho ou numa usina é muito diferente do que viver na cidade do interior. Senti claramente, era garoto, não podia explicar, mas hoje sei demarcar. Tudo era diferente, diferente a alimentação, que não se comprava nos armazéns e quitandas, mas se recebia direto do campo, diferente a criadagem, não era a que tínhamos na cidade, mas agregadas, antigas escravas ou suas filhas, que seriam; os pratos não eram como em nossas casas, mas feitos para muita gente, para quem chegasse à hora do almoço ou do jantar, onde a mesa estava sempre aberta. A vida se fazia no campo. De noite, a meninada ouvia histórias da carochinha e havia uma ceia (o jantar tinha sido às quatro horas) onde se comia aipim, milho cozido, bolos, cuscuz, pamonhas, bolachas e bolachões, em suma o que fosse da época, com mingaus ou amplas xícaras de café com leite. O melado — como gostava de fazer desenhos no prato com seus fios — era minha sobremesa constante, comido quase sempre com farinha, outras vezes com cará, inhame ou batata-doce.
Mas diversão grande mesmo era o são-joão, a fogueira, os balões, os fogos, as sortes e tudo mais. Mas, para mim, era sobretudo a festa do milho. Não saía da cozinha, por mais que de lá me enxotassem, enquanto se fazia a canjica. Gostava de ver tudo, desde ralar o milho, até mexer o panelão, botar o leite de coco, a boneca (boneca é um saquinho com erva-doce, canela, cravo e não sei que mais) e mexer. Achava estranho que se pusesse também sal. E mexe que mexe e o caldo ficava saltando e então a pessoa entendida dava o ponto, que é essencial para que a canjica não fique mole nem dura, mas macia. E se enchiam os pratos, eu, rente, com um pires para provar logo a canjica bem quentinha. Depois assistia colocarem, quando esfriava, os papéis recortados com figuras ou dísticos — "Viva São João!" — sobre os quais se pulverizava canela, para ficar impresso o enfeite. Maravilhoso! Era um dos grandes momentos do são-joão. Havia outros naturalmente, acender a fogueira, soltar rojões às ave-marias, queimar fogos e, por fim, comer a canjica. Era hábito, não sei se continua vivo, presentear nesse dia com um prato de canjica, de sorte que se recebiam vários e então todos eram provados, para saber qual a melhor. Na Bahia, era, ou ainda é, comum servir licor de jenipapo, pelo são-joão. Dele não falo porque detesto.
Mas não era só o são-joão que estava no ciclo folclórico da doçaria. No Carnaval faziam-se sonhos e sopa dourada. Não havia por lá no meu tempo o hábito das rabanadas, que na Bahia se chamam fatias-de-parida, pelo Natal, do que só conheci ao vir morar no Rio de Janeiro. De doces específicos em outras épocas não me recordo, mas os devia haver.
Outro doce que fascinou minha infância foi a cocada, e na Bahia são muitas e fabulosas. Desde a cocada-puxa, feita com açúcar mascavinho, com pedacinhos de coco soltos, até a cocada branca, a cocada d'ovos, além dos doces de coco de compoteira, cada qual mais gostoso. E as variantes, como pé-de-moleque e outros com rapadura.
Uma das coisas que mais adorava em garoto eram os mingaus, que se comiam antes do café. Não eram feitos em casa, mas vendidos pelas pretas, o de milho, com um azedinho especial, o mungunzá, o de tapioca e sei mais que outros. O mungunzá, que é de milho branco, se faz também em forma sólida e, em certas regiões, ouvi chamar de "pindunça".
Não estou falando dos doces eruditos, por assim chamar, separando dos folclóricos, e eram igualmente excelentes, os bolos, os bem-casados, os papos-de-anjo, as babas-de-moça, as ambrosias, que minha mãe fazia por uma receita que, por certo, recebeu do Olimpo, numa das formas preferidas pelos deuses, as siricaias (creme de ovos) com canela por cima, os bolos maravilhosos de aipim, carimã, milho e tapioca, os famosos sequilhos, que as freiras faziam maravilhosamente, os pães-de-ló torrados, os bolos ingleses (uma vez me contaram que, na Inglaterra, há um bolo que dura um ano, o que me encheu de imensa admiração, mas nunca pude verificar se é verdadeira ou fantasiosa a informação), os bons-bocados, as mães-bentas, em suma, esse mundo que o açúcar e o gênio humano realizam numa infindável fantasia.
Do Brasil açucareiro, Rio de Janeiro, ano 36, v.72, agosto de 1968, nº 2.
(Em Freire, Gilberto. Açúcar; uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do nordeste do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.201-205)
Via: Jangada Brasil
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