Ando tão saudosa da net, da prosa com os amigos, do balcão, do caderno de receitas...
À frente só enxergo montanhas de livros, canetas, riscados, etiquetas, rascunhos, e a imensa e fantasmogênica presença do meu orientador.
Den'demim, só há um trapo de pessoa, baranga dos dias e das noites sem fim, diante de mon écran, enclausurada em torre de marfim, visivelmente demodé, alienada dos tempos, esquecida dos colegas de trabalho e dos amigos do coração.
Deste cantinho, minúsculo espaço onde só caibo numa cadeira sobre o traseiro cansado e moldado pela eterna posição de estudante, cujo cérebro vagueia na longa jornada e penosa lavagem, para provar não-sei-o-que, nem-sei-pra-quem... Cá estou, varando noites silentes, desertas, quando apenas a arrogância dos eruditos contrastam com a ingenuidade e humildade da aprendiz que nada sabe sobre nada e tudo ignora, em pleno degredo, desterrada do terrritório de minhas manipulações, das caçarolas e alfárrabios engraxados de gordura, do precário e precioso fogão, e dos familiares cheiros de vida.
Sabe-se lá quando um dia poderei voltar a produzir meu próprio sustento, doce mel da minha existência.
Sabe-se lá quantos chás com bolachas ainda sustentarão esta penúria.
Sabe-se lá quando será o coffee-break...
Entre uma solidão e outra, certa noite, nesta nave iluminada, as lembranças gustativas arrancaram-me das mal traçadas linhas, para uma inesperada trilha nostálgica. Para um lugar querido, tempo longínquo, remoto, quiçá outra dimensão, quando eu não passava de uma menina-quase-mulher cheia de sonhos, estudante deslumbrada, enamorada e ansiosa por um lugar ao sol.
Vi a imagem de uma garota feliz com um din-din azul, que me transportou pro meu interior, num dia de sol, na feira livre de Santa Cruz do Inharé, estudantes em algazarra, quando trabalhávamos duro para conquistar a nossa noite de sonhos - o baile de formatura - vendendo jarras de refrescos e picolés de Q-suco.
Quando penso hoje, que não se deveria apreciar as tubaínas, essências simbólicas do nosso mundo descartável, que não faço a mínima idéia de como se pode deglutir esses xaropes, quase esqueço que as coisas simples e prosaicas também serviram para construir os meus sonhos...
E, quando a memória reluta em trazer as experiências do melhor tempo vivido, do desejo de conquistar o mundo, admito que a comida ou a bebida presente nessa lembrança não é a que embeleza a mesa, mas aquela que nutre a alma.
Importante é que não exageremos na viagem. A vida real é hoje, aqui, agora. E que, como dizem: "a lembrança é como o sal: a quantidade certa dá tempero a comida, mas o exagero estraga o alimento. Quem vive muito no passado, acaba sem presente para recordar."
Foto: Como está visto, viajei na viagem de Alexandro Gurgel a Santa Cruz do Inharé.
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