Saibam que, anteontem, uma equipe de fiscalização de um órgão do meio ambiente local procurava, bem aqui na minha rua, um infrator das normas de boa convivência. A visita foi motivada pela denúncia de um dos moradores. O denunciante queixou-se de um vizinho que tirava o sono dos moradores da rua. Qual não foi minha surpresa, quando disseram que a criatura barulhenta era - pasmem - um galo cantante!
Tenho o péssimo hábito de varar as madrugadas trabalhando e, há muitos dias, eu vinha escutando esse galo solitário. E, de verdade, seu canto nunca me incomodou. Ao contrário, encantava-me. Apreciava o aviso das horas e o feedback que me proporcionava. Passei a infância e a adolescência morando em cidades provincianas e lembro - como se fosse hoje - a sinfonia dos galos, ora perto e ora longe, ao raiar do dia. E lembro, até, da superstição, quando se ouvia o galo-cantar-fora-de-hora. Quem morou em cidade(s) do interior do Nordeste sabe bem do que estou falando. E da saudade que isso nos dá.
Pois, agora, o galo já não canta. Sabe-se lá, se já não foi abatido, vítima de vizinhos apoquentados, cosmopolitas pós-modernos, que nunca souberam apreciar alvoradas cor-de-rosa, nem asas roçando brisa, nem rosas cobrindo o chão...
Que mal fazia esse galinho prosaico, um cantinho de nada, que nos transportava de volta a um passado bucólico e de simplicidade? Hem? Tsc tsc
É verdade que, em grandes cidades, já não se ouve o galo cantar, anunciando o alvorecer. Supostamente, por causa da verticalização das cidades e do avanço da tecnologia. Devido ao crescimento vertiginoso da população urbana, proliferam os edifícios, e aumenta, na mesma proporção, a população que reside em apartamentos. Assim, vamos perdendo os nossos quintais e a sua poesia intrínseca: o colorido dos varais de roupas estendidas, galos, porcos, patos, galinhas, bem-te-vis, beija-flores, gatos, borboletas, lagartixas, hortas, sombras de goiabeiras, mamoeiros, coqueiros...
Inspirada no meu galinho de estimação, vítima da maldade humana, publico aqui uma poesia de Dalila Teles Veras que tem tudo a ver:
Janela Indiscreta
Bem depois de desaparecer a fonte
origem do nome da minha rua
foi a vez do riacho
Vieram homens e máquinas
esmagaram quintais, galinhas e hortas
meteram água em manilhas
e cobriram tudo com cimento
Mais tarde, outros homens
(que sequer sabiam que ali houve um riacho)
passaram sua barulhentas máquinas
sobre velhas casas
cobertas de hera e fantasmas
No lugar do verde crescem estacas
adubadas por calosas mãos
(rudes mãos)
de famintos e suados homens
que vez em quando ouvem ruídos na terra
e nem disso se dão conta
A minha rua (vista assim do oitavo andar)
é gigantesco tabuleiro - móvel paisagem
onde só é permitido observar
(In: A poesia dos calendários)