Fico tocada quando leio alguém falando tecnicamente bem da sabedoria dos meus conterrâneos, já que é tão raro o centro-sul do país curvar-se a esse saber.
Tenho visto e ouvido falar de conhecimentos de antepassados e de contemporâneos que mereceriam constar de qualquer tratado científico de respeito. Em contraste, são rechaçados pela ciência, ou até, ridicularizados. Um exemplo, é a literatura de cordel. Mas, vou além disso: há a cultura dos repentistas, emboladores, das parteiras, rezadeiras, dos pequenos agricultores rurais, que são frequentemente considerados cultura de segunda ou são tratados com frieza. Pois, esse conhecimento faz sentido, tem essência, fundamento.
Tenho observado, entretanto, que há uma uma corrente global de pensamento que admite ter o mundo alcançado um padrão de produtividade e eficiência - através da excessiva valorização da aplicação da ciência, da tecnologia, da tecnocracia -, que resultou num esgotamento daquela moderna civilização ocidental, que rejeitou não apenas o seu próprio passado, mas todas as outras culturas que não se mostraram à altura de sua autocompreensão. O mundo todo sabe hoje que essa superioridade manifestou-se em casos odiosos, como as operações de limpeza étnica, difundidas em diferentes países e colônias.
E, como já falei aqui, chegamos num processo de franca destruição da natureza, de alienação de nós mesmos e dos outros, numa evidente crise do acolhimento, de incapacidade de entender a complexidade do real. Elites pensantes de várias tendências, conclamam um retorno dos valores humanos e espirituais, para que estes transcendam os lucros materiais. Um apelo forte na direção da diversidade cultural, do respeito aos patrimônios tangíveis e intangíveis da humanidade, aos saberes tradicionais dos nossos ancestrais, ao saber popular.
Por ser adepta deste movimento e por conhecimento de causa, é que fiquei tocada com o texto de Elio Gaspari que foi publicado hoje na Folha de São Paulo e transcrevo embaixo:
"A voz dos profetas do sertão
Saiu um documento valioso. É o livro "Profetas da Chuva", da professora Karla Martins (editado pela Tempo d'Imagem, de Fortaleza).
Junta dez depoimentos da espécie em extinção dos sertanejos que se julgam (e são julgados) detentores da capacidade de prever se haverá seca ou chuva no Ceará. Os profetas são figuras do povo: Paroara, Chico Mariano, Jacaré ou Joaquim Muqueca. Ganharam notoriedade quando passaram a se reunir anualmente em Quixadá, com o respeito de órgãos técnicos do governo do Estado.
É bom lembrar que em 1984 todos os institutos de meteorologia previam mais um ano de seca. Seria o quarto, um desastre. Choveu no dia de São José. Em 1998 a ciência ensinava que haveria seca. Os profetas disseram que choveria. Choveu.
Os dez sertanejos não se apresentam como adivinhos. São observadores: se as formigas se assanham, o mandacaru floresce ou o periquito fura o cupim, vem chuva. Mesmo assim, Chico Leiteiro ensina: "Meu amigo, ver é uma coisa, conhecer é outra".
Os depoimentos dos profetas, cuja idade média está em 71 anos, retratam um pedaço da cultura do sertão. Gente sofrida, hierática, religiosa e familiar. Há neles até uma certa monotonia, mas nenhum folclore. O trabalho, bem ilustrado com fotografias de Tiago Santana, vem com um CD de falas proféticas e alguns artigos de professores.
Em ano eleitoral, não custa ouvir o profeta Jacaré: "O governo é bom, tem recurso pro sertão, falta é dar uma chega que deixar de dar tanta coisa ao povo, tem que dar emprego, serviço, pelo menos. Ó, esse Fome Zero não era pra ser desse jeito. (...) Hoje tudo é dado e o povo não tem nada".
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Foto de Tiago Santana. Conheço o trabalho de Tiago Santana, que, na minha opinião, é o top da fotografia que consegue universalizar o cotidiano popular.
Posted by: Katheryne | 29-06-2006 at 16:07