Por muito tempo, eu já não lembrava o que era, como era, um aboio.
Faz uma semana, retornei, depois de longos anos, ao Angico Torto, uma das fazendas do meu falecido avô, e que agora é objeto de herança. [Angico Torto localiza-se no município de Aparecida, antigo distrito de Sousa, que abriga o vale dos dinossauros, em pleno semi-árido nordestino].
Fui com uma tia fazer um reconhecimento do espólio, na condição de representante da minha mãe inesquecível.
E estava assim, distraída, quando, de repente, escutei o vaqueiro aboiar, tangendo o gado.
Senti uma fisgada no coração. Uma torrente de emoções e lembranças, irromperam como num filme.
Lembrei que, toda tardezinha, quando o meu vô Zuca e seu vaqueiro transportavam o gado do pasto para o curral, um cenário se repetia.
O sol deitava no horizonte. Sempre fazia calor. Do alpendre da casa grande da Barra, eu assistia, todos os dias, ao mesmo ritual, junto com minha avó e tios.
O aboio do vaqueiro misturava-se aos mugidos, que se misturavam à sonoridade dos chocalhos, ao galope do cavalos, ao trotar do gado, ao lamento de Luiz Gonzaga,
"Numa tarde bem tristonha
Gado muge sem parar
Lamentando seu vaqueiro
Que não vem mais aboiar
Não vem mais aboiar
Tão dolente a cantar
Tengo, lengo, tengo, lengo,
tengo, lengo, tengo
Ei, gado, oi..."
Em quinze minutos, não mais do que isso, o sol se punha. E uma brisa promissora chegava com a noite e o silêncio no campo. No coração da casa, um outro ritual se enredava: queimava-se o esterco do gado para espantar as muriçocas, acendia-se o lampião a gás, a cozinha entrava em polvorosa, cheiro de café fluía pelas entranhas da casa, enquanto ressoavam os barulhos de pratos, talheres e canecos que timbungavam dend'água dos potes. À zoada da cozinha, cruzavam-se as múltiplas e estridentes vozes que vinham do alpendre, as gaitadas espaçosas das anedotas sobre os sestros e cacoetes de Manoel Benedito. Formava-se um grupo, quase uma multidão, quase uma festa, entre familiares e convivas de seu Zuca Benício, esperando a ceia.
Sim, na Barra, o jantar era ceia. E uma ceia farta de coalhada com açúcar mascavo, munguzá com leite ou toucinho frito, batata doce, jerimum, ovos de galinha de capoeira, tapioca com manteiga de garrafa e queijo feitos em casa pela minha avó Otília. Não esquecendo a gula que, sendo um pecado à parte, exigia sempre carne com muita gordura, um perigo.
A prosa do alpendre se prolongava à mesa, que depois retornava ao alpendre. Contavam-se as novidades, falavam-se sobre pessoas conhecidas e sobre gado, sobre feiras, roçados, relatavam-se causos. Até pairar um clima de bem estar, um silêncio e o relaxamento - apesar do cansaço -, e se esticarem as redes por toda a casa.
Daí, a boca da noite vira uma fresca madrugada, noite escura, estrelada de vias-lácteas, vagalumes, cruzeiro-do-sul e almas de outro mundo. Vez em quando, lá de fora, o inesperado som de um chocalho. A noite adentra sorrateiramente, alheia às batidas do relógio, entre redes armadas e, por entre ressonares dos dormentes, despertados finalmente com a alvorada e o canto da passarada.
Daqueles tempos, até o presente, não sei o que foi feito do encantamento, daquela menina, pelo burburinho da fazenda. Do distanciamento, para tocar os estudos, formar família, e as moradas em sucessivas cidades, mais a dispersão dos parentes, as perdas dos entes queridos; só me restaram a saudade e um vazio, a partilha de um mundo desfeito, jamais reconstituído. Nada trará de volta o meu povo, o meu sertão, meu tamarindo. Somente as ilusões de reencontrar o tempo perdido, despertadas pelo aboio de um vaqueiro, "demoram-se na beira da estrada / E passam a contar o que sobrou."
Eh, ôô vida de gado.
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