Era finalzinho da década de cinquenta, para início de sessenta. Criança ainda, já reconhecia, intuitivamente, uma boa música. Comoviam-me as cantigas de roda, as músicas românticas, as dramáticas e, até, as de dor-de-cotovelo. As lembranças mais remotas que guardo das primeiras que aprendi a gostar, e a cantar, são daquelas que ouvia nas vozes de minhas tias e de suas amigas, e dos meus pais que também que eram bem cantantes.
Além destes, muito do aprendizado de ouvido musical veio também da eterna difusora de Sousa, e das ruas sonoras da “Cidade Sorriso”, onde nasci. Uma das ruas em que morei [situada atrás do antigo Cine Moderno], dentre as que mais marcaram a infância, há diversas fontes musicais da mais carinhosa lembrança.
As duas primeiras provem dos domínios de minha própria casa, onde meus pais costumavam cantar em momentos triviais ou especiais de nossas vidas. O meu pai adquiriu o hábito, desde quando estudou, na juventude, em seminário de padres. Ele entoava, em latim, cantos gregorianos e muitos cânticos de igreja, e dava aulas de canto na cidade. Era afinado, e apreciava muito o cancioneiro popular. Uma das mais queridas recordações que guardo dele, é cantando "Luar do Sertão" e “Uirapuru”. Muitos amigos, ainda hoje, o recordam também cantando "Índia".
Enquanto a minha mãe, cantava arrumando a casa, lavando roupa, cozinhando. Cantava a maior parte das cantigas de ninar que hoje conheço:
"neném, vá dormir
que tenho o que fazer
vou lavar, vou engomar
camisinhas pra você"
"a canoa virou
por deixá-la virar,
foi por causa de Lucinha
que não soube remar"
Lembro-a, balançando as redes de meus irmãos para fazê-los dormir, cantarolava também as músicas que ouvíamos na difusora de minha cidade, dos repertórios de Angela Maria, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves
"lembro um olhar
lembro um lugar
teu vulto amado
lembro um sorriso
e o paraíso
que tive ao teu lado"
As músicas da velha guarda, eu as aprendi a cantar com minhas jovens tias Lourdes e Valdenora. Da convivência com elas, aprendi de cor as letras de Miltinho, Dolores Duran...
A segunda fonte, em importância, era o rádio de minha casa, e por meio dele, posso lembrar-me de ter conhecido "Tico-Tico no Fubá", "Moendo Café", “Suco, Suco”, “Wheels”, “Quando Setembro Vier”. Arre! Bons e longos tempos, os do rádio.
Saindo do contexto familiar, a minha vizinhança era igualmente musical, toda a rua, a cidade. O Colégio Auxiliadora, onde estudava, com seus dramas musicados dos dias das mães, dos pais, dos mestres, dos aniversários de Madre Aurélia. Os passeios/pic-nics feitos ao balneário de Coremas, eram musicais, pelo uso de toda sorte de instrumentos, sanfona, violão acústico/elétrico, maraca, saxofone.
Por tudo isto, o meu sonho de consumo mais secretamente acalentado até a adolescência só poderia estar relacionado à música. O maior desejo que tinha, naquela idade, era, certamente, ter um acordeon vermelho, igualzinho àquele, cujos acordes eu ouvia da casa de Seu Elísio (nosso vizinho), quando seus filhos, Deusinho e Fátima, ainda crianças, tocavam o tão cobiçado, deslumbrante e mágico instrumento. Da calçada, pela janela, eu os assistia, absorvendo avidamente as valsas, como “Waves of the Danube”, que tanto enfeitiçavam o meu coração pequenino.
Numa das casas mais adiante, vizinha à de Dr. Augusto, de vez quando, um grupo de jovens sentava na calçada para tocar... acordeon! E para cantar! Foi quando ouvi, num coro, a primeira vez,
"Hoje, eu quero a rosa mais
linda que
houver..."
Das calçadas da minha rua, à rua da Sanbra, eu brincava de roda com Lucinha de Seu Eliezer, e com outras tantas meninas. Foi a minha primeira turma. Desse tempo, guardo na memória todas as cantigas
"se essa rua
se essa rua
fosse minha..."
"a leiteira
a leiteira vende o leite
na cidade, na cidade de Lisboa".
E, cravada em meu coração, tenho a imagem de Lucinha, minha querida amiga de infância, que tão cedo partiu.
Seguindo o mesmo quarteirão, lembro que, aos pulos – só-andava-correndo -, ia à sorveteria “Flor de Lis”, comprar picolé. Lugar super frequentado, havia sempre muita, muita música tocando, tão alto que se espraiava por toda a cidade. Miltinho era uma das vozes mais ouvidas:
"você, botão de rosa
amanhã a flor mulher"
como também Nelson Gonçalves:
"Fica comigo esta noite
não te arrependerás
lá fora o frio é um açoite
calor aqui tu terás".
A essa lembrança, vem associadas às imagens dos passeios ao redor da “Flor de Lis”, dos brotos de braços entrelaçados, e de Absemar, infalivelmente sentada na calçada, acompanhando o burburinho da sorveteria.
Como negligenciar tão preciosas lembranças? Para mim, são como velhos postais sonoros, guardados com chave de ouro, que tocam de tempos em tempos, sempre que minha alma carece de retornar ao tempo perdido.
Fui uma criança de sensibilidade tão aguçada, de tanta expectativa e solidão interna, que, se não fosse a minha infância tão sonora, e não tivesse um coração tão aberto para música, não teria sido feliz, fosse eu quem fosse.
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P.S. A quem conhece a autoria da foto da Sanbra, que circula no Facebook, peço a gentileza de me informar.
Posted by: Aline sá | 09-04-2013 at 05:55