Uma das viagens mais nostálgicas que, recorrentemente, gosto de fazer, é voltar no tempo em que, inúmeras vezes, passei por Lençóis, na Bahia, fazendo o percurso Brasília-Juazeiro do Norte-Sousa-João Pessoa-Brasília. Já faz um bom tempo - eu diria, mais de trinta anos. Tanto tempo, que os registros fotográficos de então, desbotaram, perderam a cor - ou melhor, avermelharam.
As primeiras vezes, que fiz esse trajeto com meu marido, nosso filho ainda nem havia nascido; mas, depois, o repetimos, de carro, com ele bebê, imerso em suas parafernálias, de mamadeiras, fraldas a todas as tralhas pertinentes e cabíveis no nosso inesquecível chevette. Com ele maiorzinho, esperto, curioso, falante, às vezes enjoado, fazíamos toda a viagem respondendo às suas indagações sobre tudo, as estradas, as pessoas, as montanhas, o sol, a lua, o tempo, as horas, a chegada. Momentos mágicos e lúdicos cristalizados em minha memória emotiva.
Em algumas oportunidades, viajamos na companhia de amigos conterâneos também residentes em Brasília, e vínhamos todos em comboio animado, com nossas crianças, passar as férias, as festas natalinas pelas praias do Nordeste e matar a saudade das nossas famílias.
Noutras ocasiões, viajávamos sozinhos, um tanto inseguros, com as estradas longínquas e desertas, cheias de crateras e depressões, esgotando o nosso estoque de fitas cassetes, e toda sorte de sons e rítimos favoritos. On the road, ouvíamos desde clássicos (com Waldo de los Rios), românticos orquestrados, instrumentais (Mantovani, Billy Vaughn, Ray Conniff, Paul Mauriat, Zamfir), jovem guarda (Roberto Carlos), rock-pop (Beatles, Credence, Rolling Stones, Santana, Elthon John), até forró (Gonzagão, Trio Nordestino), frevo e música sacra.
Foram muitas aventuras, inesquecíveis experiências, ora divertidas, prazerosas, ora cansativas, tensas, e cheias de riscos. Deixávamos Brasília sempre sob chuvas torrenciais, que amainavam ao longo do caminho. Já no entorno de Ibotirama, fazíamos de balsa, a travessia do Rio São Francisco. No percurso passávamos por importantes cidades, Itaberaba, Seabra, Rui Barbosa, Barreiras; em seguida, nos deparávamos com belíssimos panapanás, nos trechos margeados por baixa vegetação, formando alamedas, quase um túnel natural, canalizando uma aragem agradabilíssima. Era o frescor do sul da Bahia. Esse clima ameno prolongava-se até Lençóis, numa brisa refrescante e serena, típica e sob medida da Chapada Diamantina, combinada com um por-de-sol inigualável, uma paisagem paradisíaca. Aos nossos sentidos, a liberdade era tudo que ali estava.
De repente assomavam-se as silhuetas da Chapada Diamantina, das ruelas antigas, mostravam-se as pontes, os prédios antigos de lampiões nas fachadas, o calçamento crespo, suas lavadeiras urbanas, afloravam-se as orquídeas e mandacarus, as suas lendas na penumbra do ocaso, começava a nos embrigar uma atmosfera de tempo perdido no passado. Essas imagens e sensações de Lençóis continuam intactas na memória de minhas retinas. Sempre que ouço falar em Lençóis, sinto saudades e vontade de revê-la, pois sei, pelos relatos de amigos e pela mídia, que mudanças profundas aconteceram na cidade, outrora bucólica, calma, semi etérea, quase deserta. Não sei se prefiro as suas imagens antigas guardadas na lembrança, como uma relíquia, ou se gostaria de revisitá-la e reconhecê-la com suas novas diversidades, modernas roupagens, outras tonalidades, novos cheiros, diferentes contornos, talvez novas esquinas, novas presenças. Pelo sim , pelo não, com os os velhos álbuns das viagens por testemunhas, uso-os como lentes sobre os últimos vestígios dos caminhos de Lençóis que me levam de volta ao mapa do meu passado.
Lençóis
Lençóis é uma cidade fundada com o nome de Lençóis do Roncador, no apogeu do garimpo na região e, por isso, conhecida como Capital do Diamante. Tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional, ostentando um lindo casario colonial do final do século XIX, a cidade tem sua história marcada por glórias, riqueza e muitas lutas. Desde quando foi extinta a atividade de mineração e criado o Parque Nacional da Chapada Diamantina, o turismo vem impulsionando o desenvolvimento da região, transformando Lençóis no principal destino da Chapada Diamantina, atraindo turistas de todas as partes do mundo. Imagens antigas da cidade e de seus garimpos podem ser apreciadas neste site.
Um dos roteiros mais atraentes de Lençóis, na época em que a conheci, eram as caminhadas pelas trilhas que cortam o parque, e os passeios pela Chapada. Naquele período, a cidade possuía poucas pousadas e, nós particularmente, ficávamos sempre na Pousada de Lençóis situada numa colina (hoje Hotel de Lençóis), cuja reserva era feita com bastante dificuldade e antecedência, quando ainda não havia fax, nem internet.
A seguir, registros de nossas passagens por Lençóis, em diferentes viagens.
Capela Senhor dos Passos, localizada ao lado do Mercado Municipal e tendo a sua frente o Rio Lençóis. 1984.
Vista para a Praça Horácio de Matos, ponto central da cidade (ao fundo, a Capela Senhor do Passos). 1984.
Praça Horácio de Matos, vista da Pensão Diamantina. 1984.
Pensão Diamantina - riqueza de arquitetura, localizada em frente ao Mercado Central e próxima às Pontes dos Arcos Romanos (construções do séc. XIX que ligam as duas partes da cidade, dividida pelo Rio Lençóis). 1984.
Ponte dos Arcos Romanos. 1984.
Casario antigo, com arquitetura preservada, com lampiões na fachada. 1984.
Subconsulado Francês, ao lado da agência do Banco do Brasil. Prédio do séc. XIX, onde se instalou um posto de transações com a Europa. 1984.
Com amigos, companheiros de viagem, Paulo e Marisa. 1984.
Ponte dos Arcos Romanos. 1984.
O velho Mercado Municipal, com traços de influência italiana; além de servir ao comércio, foi palco de muitas transações de diamantes. Aqui, participamos com Marisa e Paulo, de uma aonchegante seresta, entre pessoas simples da cidade. 1984.
Já não se vêem mais coretos nas praças, como antigamente. 1984.
Rio Lençóis que atravessa a cidade, forma corredeiras, quedas d'água, alaga velhos garimpos, forma praias, num clima gostoso de altitude e belos espetáculos de cascatas. 1984.
Girassóis eram plantados em quase todos os jardins de Lençóis. 1984.
Vista parcial da cidade. 1984.
Lateral da Pousada de Lençóis, antes da reforma.1985.
Lateral da Pousada de Lençóis, antes da reforma, com vista para apartamentos e piscina, como se pode ver, ainda, morros e garimpos.1985.
Vista dos apartamentos da Pousada. 1985.
Elias junto à roda d'água da Pousada. 1985.
Na sacada da Pousada, com vista para a cidade ( ver teatro, coreto, prefeitura, e eu). 1985
Na pérgula da Pousada de Lençóis.
A caminho da Cachoeira do Glass.
Lençóis-BA, 1985 - Corredeiras nas pedras ponteagudas resultantes dos velhos garimpos, formando pisicnas naturais.
Gruta do Lapão ou Gruta da Lapa Doce, a 4 km de Lençóis. Caverna ampla com grande quantidade de formações como estalactites e estalagmites. É onde os artesãos locais recolhem matéria prima para o artesanato de garrafas. 1985.
Lavadeiras de Lençóis-BA, 1985 - Lavagem de louças nos córregos a céu aberto. Dizem que é um hábito antigo da população.
Numa das viagens, tivemos de pousar por mais tempo do que prevíamos, em Lençóis, por falta de gasolina. Era época de racionamento, os postos tinham horário para fechar, e contando também que a cidade tinha poucos e pequenos postos (não sei se um ou dois), e de bandeira desconhecida. Uma vez, passamos despercebidos pelo posto anterior a Lençóis; outra, não conseguimos alcançar o posto aberto.
Passávamos, em geral, o fim de semana, nalguma pousada, até que numa manhãzinha de segunda-feira, descortinando a névoa das montanhas, pegávamos a trilha do caminho de casa. Como ficávamos, frequentemente, no Hotel de Lençóis, da colina podíamos vislumbrar o sol atravessando a névoa. Pegávamos o caminho de volta à estrada, sentindo o aroma de café que fluía das casas, contemplando, nas estradas estreitas e floridas, as plantas orvalhadas, a natureza em sua pujança. Lembro, nitidamente, dessa cena, enquanto descíamos ladeira abaixo, ouvindo Elvira Madigan pela flauta de Zamfir.
Cruzar as fronteiras desse paraíso, era a etapa mais crítica da viagem, porque, depois, e logo, logo, nos depararíamos com uma mudança drástica de clima e temperatura, diante do mormaço incandescente do sertão nordestino. Viriam os longos e desertos trechos de estradas, esburacadas, empoeiradas, sinistras, sem acostamentos, na linha condutora da BR-242.
Essas estradas, nas dédadas de 80/90, eram o cenário fiel da crise econômica que o nosso país enfrentava. Crianças e jovens maltrapilhos nas estradas, tapavam os buracos com areia, a troco de quase nada, camuflando os maiores problemas sociais que vivíamos, a fome, a miséria, e falta de segurança nas estradas. Ajudando ou negando a esmola - duas faces da mesma moeda -, de ambas as formas, corríamos o risco de sermos assaltados.
O trajeto de Lençóis a Juazeiro do Norte, passando por Feira de Santana, Alagoinhas, Aracaju, Maceió, Cabo de Santo Agostinho, Recife, Petrolina, Salgueiro - era sempre demorado e tenso, e o estado das rodovias definia se teríamos tempo de adentrar a noite em alguma cidade que nos oferecesse uma hospedagem decente. Não raro, o trajeto era dificultado, também, pelas avarias no carro. Numa das vezes, de tantos sacolejos, o meu pimpolho passou mal, enjoou tanto, que não víamos o fim da viagem. Uma aventura!
Alento, só quando avistávamos Feira de Santana, ou as capitais que ficavam no trajeto. Nas entrelinhas, somente muitos buracos, calor, poeira, muitos canaviais com imensos caminhões engarrafando o trânsito.
Ainda ssim, considero que viajar é sempre uma viagem, e, em quaisquer circunstâncias e lugares, significa sempre mais experiência na bagagem. De avião é ótimo, mas de carro é também prazeroso, por possibilitar paradas providenciais a lugares interessantes, e a liberdade de conhecer novos lugares e pessoas, sem a rigidez de horários de voo ou espera em aeroportos.
Desde que bem planejada, uma viagem de carro pode ser também inesquecível, como as que fizemos, por alguns anos, pelos caminhos de Lençóis.
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Dicas:
Livro “Um Guia para a Chapada Diamantina” de Roy Funch, um americano que, por força do destino, acabou morando, e ainda vive, em Lençóis. Foi o idealizador e primeiro diretor do Parque Nacional da Chapada Diamantina.
Mapa da Chapada Diamantina
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“As lavadeiras de Mossoró,
cada uma tem sua pedra no rio:
cada pedra é uma herança de família,
passando de mãe a filha, de filha a neta,
como vão passando as águas do tempo…
Na pobreza natural das lavadeiras,
as pedras são uma fortuna, jóias que elas
não precisam levar para casa.
Ninguém as rouba, nem elas, de tão fiéis,
se deixariam seduzir por estranhos”.
~ As lavadeiras de Mossoró, Carlos Drummond de Andrade.