A duras penas tento acomodar a rotina doméstica, com o trabalho e a escrevinhação. Sufoco para equilibrar tudo no trabalho, atendendo a tudo e a todos, sem ficar devendo nada a ninguém.
Por isso, me pego a pensar na aventura (ou na desventura, não sei), do que é ser, nos dias de hoje, mulher, mãe, dona-de-casa, cozinheira, empregada doméstica, tudo ao mesmo tempo. Mais especificamente, me pergunto quem é essa mulher, dentro ou fora do seu espaço culinário, por assim dizer.
A minha atual secretária, ao longo de seis anos de atuação em minha residência, tem progredido muito lentamente no departamento culinário. Ainda que assuma o trabalho com ética e responsabilidade, e tenha desejos de progredir na vida, é uma cidadã que, estranhamente, não quer aprender a ler, que não deseja ler o mundo, desafiando a qualquer argumento pedagógico de Paulo Freire.
Nessa situação, alimento uma série de contradições internas. Reconheço a precarização e a inadequação dessa categoria de trabalho nos dias atuais. Ao mesmo tempo, constato a impossibilidade de mudar a minha realidade, e que, ressalvadas as proporções, corresponde à realidade brasileira do trabalho feminino.
Preservamos hábitos seculares em família, ao mesmo tempo em que somos (nós, mulheres) obrigadas a nos adaptar às novas exigências sociais no mundo do trabalho. Trabalhamos em tempo integral, nos esforçamos para nos adequar às mudanças (novos papéis e atribuições funcionais), assumindo novas responsabilidades, mas continuamos presas ao nosso tradicional papel de dona-de-casa, de cozinheira, de chefe da cozinha. Cozinhar, é bom, oh, yes. Mas, estou me referindo àquela condição escravizante e sem melhorias de compartilhamento de tarefas, solidariedade ou mudanças da mentalidade masculina, a curto prazo.
Neste aspecto, pouca coisa tem mudado, principalmente, no nordeste - não obstante a inegável conquista da PEC das Domésticas. Aqui, a maioria dos homens ainda não cozinha e nem admite reformular seus conceitos. Em casa nordestina, de modo geral, ainda é a mulher a quem se impõe a tarefa de produzir alimentos e dar de comer. Quando ela também trabalha fora, precisa dar conta de uma dupla jornada. Essa é a minha realidade, igual à de tantas mulheres brasileiras. Por isso, a presença da doméstica em nossos lares é tão valiosa, sendo, entretanto, tão pouco valorizada.
Particularmente, eu gostaria de implementar umas idéias mais modernas a esse respeito. Considero que o trabalho doméstico é bastante precarizado e, no mais das vezes, pessimamente remunerado, com direitos trabalhistas e de proteção social ainda pouco reconhecidos, sobrecarregando, sobretudo, as mulheres mais pobres e menos informadas sobre seus direitos e deveres como cidadãs. Os países desenvolvidos já avançaram nessa questão, terceirizam esses serviços de uma forma diferente, de modo que o papel da empregada foi, praticamente, reconfigurado ou desapareceu.
De fato, mesmo em se tratando de iniciativas paliativas e limitadas em termos de direitos da mulher, aqui, o nosso país ainda é considerado mais atrasado do que muitos outros latino-americanos.
Na minha modesta opinião, do ponto de vista de donas-de-casa que também trabalham fora e se tornaram executivas, e, comparativamente com a situação das empregadas domésticas, as recentes mudanças legais não se traduzirão em melhorias de condições de vida, assim, do dia para a noite. No ambiente doméstico, nos lares, vejo uma deterioração - particularmente em relação ao trabalho e aos encargos familiares — que atinge especialmente as mulheres mais pobres. E não é um fenômeno exclusivo dos países subdesenvolvidos; ocorre também nos países centrais, embora os efeitos sobre os primeiros se manifestem de forma mais incisiva, tornando as mulheres mais sobrecarregadas ou exploradas.
O fato é que quanto mais galgamos novos patamares profissionais, ampliamos novos espaços e arregimentamos mais trabalho fora de casa, mais dependente a família torna-se da dona-de-casa e da empregada doméstica.
Não raro, e, principalmente quando me encontro mais assoberbada, a eficiência cai, a disposição vai pras cucuias, a minha cozinha vira o retrato do passado e a pressão recai pesadamente sobre a figura da empregada; sinto uma necessidade premente de revisão de papéis, de uma mudança de mentalidade, de uma reorganização de como nós, criaturas que nos destinamos a viver junto, mulheres e homens, compartilhamos e realizamos as necessidades humanas.