Por que, raramente, cuidamos de apreciar e preservar as nossas raízes? Além das raízes vegetais, minha gente, pfv.
Este assunto vai além do sabor da mamãe, dos avós, pois, estas tradições sempre fazemos questão de repetí-las até a axaustão. E, tem mais, quanto mais avançamos na idade, mais nos aproximamos dos paladares, sabores, alquimias dos nossos pais e antepassados mais longevos. Praticantes desse esporte das panelas, ou não (nunca é tarde demais), pergunto: quem não adora saborear com orgulho e prazer aquela iguaria de trocentos anos antes feita pelas mãos mãe, vovó, tia-avó, bisavó?
Mas, estou falando aqui, literalmente, é daquele sabor, daquele saber mais tradicional ainda - o dos indígenas e dos escravos.
Imagens: Revista Radis
Na área da educação formal, já existem duas leis regulamentadas (ainda não efetivamente implementadas) para o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena. É da cultura culinária, alimentícia, que estou falando. É claro que não estou referindo-me às escolas de gastronomia, nem de escola-empresa. Então, não acredito que um dia o sistema educacional chegue neste estágio de ensinar o "saber do sabor", o saber tácito, já que não ensina nem o básico do nosso cotidiano doméstico. São tão raras as escolas que têm uma cozinha como laboratório... [Vocês conhecem alguma?]. Imaginem, então, uma escola que ensinasse a fazer "quinhapira de aracu com caruru e tucupi preto com saúva". Esse 'prato' existe sim, e não é uma coisa do outro mundo. Está no livro “Comidas Tradicionais Indígenas do Alto Rio Negro” e feito pelas mulheres indígenas do Alto Rio Negro.
Map of Amazonas highlighting São Gabriel da Cachoeira. (Photo credit: Wikipedia)
É muito oportuno rever o comentário que Carlos Alberto Doria fez em 2009, no E-Boca Livre:
" A maior virtude culinária do livro é desconstruir a Amazônia. Ou melhor, a falsa unanimidade e uniformidade que o conceito nos sugere. Aprendemos, desde a escola, que aquela região é uma coisa só: floresta virgem,índio e bicho (depois, madeira, boi e soja). Culinariamente, acreditamos que o que se come em Belém é um resumo da Amazônia. O livro mostra que não é.
Outra grande virtude culinária é que não nos apresenta receitas da maneira que Escoffier nos ensinou que devem ser escritas: tudo padronizado, pesado. Nada disso. É um livro de etnografia: registra os processos culinários tal e qual as mulheres que participam do projeto descreveram.
Há receitas que começam na roça, descrevendo uma árvore ou uma fruta. Em outras, parece que está tudo ali, à mão, e se trata de uma alquimia: mistura isso com aquilo e estamos conversados. Ensina a fazer piracui e ensina que o melhor peixe para ele é a traira, pois 'o piracui desse peixe fica bem fino'
É etnografia que precede qualquer teorização ou qualquer 'experimentação' na cozinha urbana que se pretende 'de raízes'.
Francamente, se eu fosse cozinheiro passaria uns seis meses nas casas e roçados de São Gabriel da Cachoeira, em vez de ir espumar em Barcelona."
---------------
A seguir, trago para vocês uma receita indígena de "paiauaru dos barés", uma bebida fermentada - "adaptada aos nossos recipientes de armazenamento, ao nosso abacaxi de supermercado, às nossas leveduras urbanas".
"Paiauaru é o nome dado pelos índios da família baré a uma bebida feita com abacaxi e garapa de cana".
Inspirado em uma receita pré-colonial da etnia indígena Baré, que vive na região conhecida como Nordeste Amazônico, o espumante é feito com abacaxi fermentado e caldo de cana. Para virar espumante, a bebida passa por dois processos de fermentação: primeiramente, em um recipiente poroso, como o barro, e depois na geladeira em garrafas de presilha. O resultado é levemente alcóolico, doce e suavemente frisante.
Espumante de Abacaxi - Adaptado do Paiauaru dos Barés
Ingredientes:
2 abacaxis descascados e cortados em cubos
1 litro de água
1 litro de caldo de cana
Modo de preparo:
1. Cozinhe o abacaxi com a água até que fique bem mole (cerca de 20 minutos).
2. Coloque num vidro de boca larga, feche a boca e deixe fermentar por dois dias ou até borbulhar.
3. Passe por uma peneira, pressionando bem, e reserve.
4. Leve o caldo de cana ao fogo e deixe ferver. Vá tirando a espuma que se forma com uma colher. Quando o caldo estiver bem limpo, junte ao suco do abacaxi coado. Passe por uma peneira de nylon para que o líquido fique bem límpido. Se precisar, passe várias vezes.
5. Ponha a bebida em garrafas que feche com presilhas. Deixe na geladeira por mais dois dias. Sirva bem gelado e tome cuidado ao abrir a garrafa.
---------------
Comidas tradicionais do Rio Negro
Descubra como povos indígenas do Amazonas preparam as suas refeições!
Resenha do Livro COMIDAS TRADICIONAIS INDÍGENAS DO ALTO RIO NEGRO
LEITE, Maurício Soares. Comidas tradicionais indígenas do alto Rio Negro. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 26, n. 3, Mar. 2010 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2010000300021&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 09 Set. 2013.
Fontes da receita do Paiauaru dos Barés:
Blog Paladar, do Estadão
Estadão - 7º Paladar- Cozinha do Brasil
Recent Comments